Elisabete Jacinto: a entrevista
Leia ou releia a reportagem com a entrevista à piloto portuguesa Elisabete Jacinto, originalmente publicada na edição 108.
Trocou as salas de aula pelos desertos e pelas aventuras em Todo-o-Terreno. Enfrentou dunas, zonas de areia mole, noites frias a dormir no chão, mas Elisabete Jacinto superou todas as dificuldades e escreveu o seu nome na história do desporto motorizado internacional. Como? Ao ser a primeira mulher a vencer uma longa maratona de todo-o-terreno ao volante de um camião.
Licenciou-se em Geografia e chegou a leccionar, mas as quatro paredes da sala de aula não eram o suficiente para se sentir realizada.
Expandiu os horizontes através do desporto motorizado: primeiro de mota, depois de carro e, por último, de camião, com o qual tem competido há 16 anos. Em 2019 participou pela décima vez no Africa Eco Race e subiu pela sexta vez ao pódio. A diferença é que foi nesta edição que Elisabete Jacinto “realizou um sonho” ao vencer a prova que ocupou o lugar do Rali Dakar, depois deste ter sido transferido para América do Sul. “É a recompensa por todo o trabalho realizado e a prova de que atingi um bom nível como piloto. Era isso que procurava há muito tempo”, afirma, exultante.
Foi entre 1 e 13 de Janeiro que se realizou a 11.ª edição do Africa Eco Race, com a equipa da Bio-Ritmo, a bordo de um MAN TGS e comandada pela piloto de 54 anos do Montijo, a manter-se na liderança da classificação geral da categoria camião ao longo de quase toda a prova. Foi em Marrocos que a competição se iniciou e por onde se manteve durante cinco etapas e foi aí que Elisabete confessa que ganhou “muita confiança e entrei na Mauritânia na expectativa de ver como iria conseguir passar na areia. Quando percebi que o camião passava bem, fiquei aliviada”.
Conhecedora de Geografia e depois de ter falhado apenas uma edição desta competição, Elisabete já conhece como «a palma da sua mão» os principais obstáculos que se encontram nestas paisagens africanas: “as pistas muito pedregosas e perigosas em Marrocos e muitas zonas de areia mole na Mauritânia”. E é a pensar nisso que, antes da prova, se «afina» o camião. Uma das principais alterações deste ano no MAN TGS foi na suspensão, com a compra “de um novo conjunto de amortecedores da marca Donerre”. Foi graças a ele que a piloto portuguesa conseguiu “andar muito mais rápido em Marrocos”. Para além disso, “adaptámos, finalmente, as jantes de alumínio que me permitiram baixar muito a pressão dos pneus” e isso, “associado ao facto do motor ser mais potente (830 cv), ajudou-me a progredir nas zonas de areia mole da Mauritânia”. E, em termos práticos, em que é que isto se traduz? “Não tive de ficar horas parada a cavar e, sempre que ficava presa na areia, precisava apenas de alguns minutos para sair e não horas, como anteriormente”, recorda Elisabete Jacinto.
Considera que este ano “a sorte esteve do meu lado” e, por isso, enumera rapidamente os «azares» que teve: “apenas um furo, peguei na pá duas vezes, tive um problema mecânico numa etapa que demorou oito minutos a resolver e, quando fiquei presa entra a parede da duna e um grande tufo de erva (o que me poderia ter obrigado a perder muito tempo), tive quem me ajudasse a sair”.
Dentro do camião faz-se acompanhar por José Marques (navegador) e Marco Cochinho (mecânico), uma equipa formada há longos anos e que, por isso, se conhece bem. “O facto de trabalharmos muito bem em conjunto contribui sempre para um bom resultado e sabemos tirar partido disso. Sei com o que posso contar de cada um e que estão lá para fazer um trabalho de qualidade”. A equipa foi acompanhada por um camião de assistência MAN KAT, onde seguiam Jorge Gil (coordenador da equipa e marido), Hélder Anjos (mecânico) e Sérgio Cardoso, a mais recente «aquisição», que conduziu o camião.
É graças a todos estes elementos que Elisabete nos garante que, “depois de acabar cada etapa, posso ir dormir descansada e não me preocupo com mais nada”. Mas isto é apenas em sentido figurativo, pois embora fique tranquila no que diz respeito à parte mecânica, as noites africanas não são fáceis de ultrapassar. “Dormimos em tendas pequeninas, no chão. Acordo várias vezes ao longo da noite, com frio (há noites em que durmo completamente vestida, pois as temperaturas rondam os zero graus), com dores no corpo... acordamos com o barulho dos motores, dos geradores”, são alguns dos exemplos que mostram que no rali não há o chamado «sono de beleza» para repor energias.
Já sabemos que as noites não são fáceis, mas e em relação à alimentação durante a competição? A resposta de Elisabete Jacinto não deixa margem para dúvidas: “neste rali é suposto sobrevivermos às más condições em termos gerais”. As refeições servidas pelo catering da prova são levadas de França e “podem ser facilmente descongeladas e aquecidas”. Embora “não seja a melhor comida do mundo, tendo em conta que estamos no meio do deserto e não temos alternativa, torna-se maravilhosa”. Ainda assim, vai para terras africanas prevenida: “como fruta que o Jorge [o marido] vai comprando pelo caminho, muesli que trago de casa e iogurte, massa e ovo estrelado. Tudo isto ao pequeno-almoço”. Já no camião vai-se reforçando com barras de cereais e muita água e, “quando chego depois da etapa, ataco a latas de conserva que trazemos de Portugal ou que o Jorge vai adquirindo pelo caminho”.
Ainda assim, apesar das noites mal dormidas e da alimentação que não será a ideal, Elisabete Jacinto manteve-se forte durante todo o rali, chegando a admitir que esta foi “a primeira vez que mantive sempre uma certa calma e nunca «stressei» quando estava em dificuldades”. Foi por isso que, “na última etapa deliciei-me com o facto de saber que a meta estava ali à minha frente e que iria ser a primeira classificada. Adorei fazê-la! Não tenho palavras para descrever o que fui sentindo ao longo daqueles quilómetros”.
A etapa que teve honras de encerrar o rali voltou a ter como palco o Lago Rosa, um dos sítios mais visitados no Senegal, conhecido pela cor rosada da água e pela elevada concentração salina, o que permite flutuar com muita facilidade, tal como no Mar Morto.
Depois deste triunfo chegaram “várias mensagens, fui recebida pelo Embaixador Português no Senegal e recepcionei um email com os parabéns da Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade”. Já o regresso a Portugal descreve-o como tendo sido “uma festa”, com “direito a escolta da PSP desde a saída do avião e tive uma grande recepção feita por amigos”.
Conquistado o troféu, que irá certamente merecer um lugar de destaque em casa, e com o nome inscrito nos livros da história do desporto motorizado internacional, confessa que “para já não tenho objectivos definidos. Acho que tenho de pensar um pouco”. Estamos certos que está escrito nas estrelas qual o caminho que irá percorrer. Pela nossa parte, ficaremos na expectativa do que está para vir, seja na competição, seja no regresso às salas de aula. Até lá, vamos aproveitando para celebrar este feito singular alcançado por Elisabete Jacinto.