A ferrovia está a recuperar de três décadas de atraso
Joaquim Guerra, Presidente da Plataforma Ferroviária Portuguesa (PFP), em entrevista ao ‘Mobilidade Mais’ da EUROTRANSPORTE
Tendo em curso vários projectos, de onde se destaca o “Mobilizador Ferrovia 4.0”, a ferrovia nacional caminha no sentido de colmatar um atraso considerável. Mais eficiente, amigo do ambiente, sustentável, acessível, confortável e seguro, o transporte por comboio está na prioridade do Governo, que já assumiu investimentos importantes, conduzindo a ferrovia nacional não só ao cumprimento do Acordo de Paris, como também à construção de um mundo melhor. Disso mesmo nos dá conta Joaquim Guerra, Presidente da Plataforma Ferroviária Portuguesa (PFP), em entrevista ao ‘Mobilidade Mais’ da EUROTRANSPORTE.
A Plataforma Ferroviária Portuguesa (PFP) foi fundada em 2015 e, desde 2017, reconhecida pelo IAPMEI como Cluster de Competitividade da Ferrovia. Daí para cá o que tem protagonizado no sector?
A PFP tem contribuído de forma muito premente para o desenvolvimento do sector ferroviário em Portugal, sendo o exemplo maior o da elaboração do Pacto Sectorial. Tem sido parte muito activa na «construção» do futuro Centro de Competências Ferroviário, tendo sido ainda a grande dinamizadora do projecto já submetido a financiamento e aprovado, o Ferrovia 4.0.
O cluster da PFP é, actualmente, o grande dinamizador deste sector e está a realizar um trabalho que é amplamente reconhecido por todo o mercado e pela Tutela. Em que ponto estamos?
Há ainda muito caminho a percorrer. Diria mesmo que estamos a dar os primeiros passos naquilo que queremos que venha a ser o caminho para que de uma vez por todas o sector ferroviário tenha a importância que verdadeiramente deve ter no nosso país e que já tem por essa Europa fora.
O comboio é o transporte de hoje e do futuro, não tenhamos dúvidas sobre isso e não podemos deixar passar essa oportunidade, já bem vincada pela União Europeia ao considerar este ano como o Ano Europeu do Transporte Ferroviário.
O Centro Tecnológico Ferroviário e o projecto do “Comboio Português”, são os grandes desafios para a ferrovia nacional?
São de facto dois projectos que nos animam. O Centro de Competências Ferroviário já está numa fase de conclusão da sua constituição jurídica e cremos que virá a sê-lo a muito breve trecho. O comboio português é um projecto de longo prazo e que pelas suas características merece maturação. Mas é um projecto no qual depositamos grandes esperanças e que queremos que seja uma realidade dentro de algum tempo.
Como analisa o Cluster da Ferrovia nacional?
O Cluster da Ferrovia, tal como todos os restantes Clusters Nacionais, desempenha um papel fundamental na promoção da inovação, da modernização, potenciando uma capacidade colectiva de dar resposta às exigências actuais como digitalização e a sustentabilidade ambiental.
Os oito projectos de inovação que constituíram a base da agenda estratégica da PFP, já foram conseguidos?
Os projectos estão em curso, embora com ritmos distintos. Destacamos o grande projecto Mobilizador Ferrovia 4.0 que a PFP conseguiu dinamizar e agregar 22 entidades num consórcio vencedor, de 10 Milhões €, a desenvolver nos próximos 3 anos.
O Parlamento Europeu aprovou uma proposta da Comissão para designar 2021 como o ‘Ano Europeu do Transporte Ferroviário’. O que é que, em Portugal, estamos a fazer nesse sentido?
Há um conjunto de iniciativas já delineadas pelo sector e do qual a tutela sectorial já tem conhecimento. O que se pretende é que haja um envolvimento de todo o sector, operadores, gestor da infra-estrutura, a PFP e o Museu Ferroviário. Todos somos poucos para que se celebre um ano que queremos que seja um marco definitivo para o sector ferroviário europeu, mas sobretudo nacional. A União Europeia desde há muito que tem o comboio como um modo de transporte muito amigo do ambiente, sendo classificado claramente como altamente sustentável. Se olharmos para a decisão que estabelece este ano como o Ano Europeu do Transporte Ferroviário, é claro e objectivo que as instituições europeias consideram o transporte ferroviário amigo do ambiente, sustentável, acessível, confortável e seguro. É também inequívoco que, para que a União Europeia cumpra os objectivos de Paris, tem de haver uma transferência modal da rodovia para a ferrovia. Por isso, toda e qualquer iniciativa que promova o sector ferroviário é bem-vinda.
A decisão, adoptada pelo Conselho Europeu, está intrinsecamente associada aos esforços da União Europeia (UE) para promover modos de transporte respeitadores do ambiente e alcançar a neutralidade climática até 2050. Estamos já a trabalhar com estes objectivos?
O sector ferroviário europeu assumiu um compromisso de cumprimento das metas do Acordo de Paris, um compromisso ao qual aderiu todo o sector. Portugal já começou a dar passos nesse sentido e a este propósito salientamos o exemplo concreto da CP, que está a recuperar material circulante que se encontrava parado há imensos anos, injectando-o na rede ferroviária nacional, o que permite aumentar a capacidade de resposta do lado da oferta e bem assim recuperar as necessárias redundâncias para garantir os níveis de serviço exigido. Por outro lado, reforçando essa capacidade, foram adquiridas cinquenta carruagens à congénere espanhola, RENFE, aumentando assim o parque circulante e, consequentemente, a sua robustez. É também do conhecimento público que o Governo autorizou a compra de novo material circulante o que reflecte a preocupação na promoção do comboio enquanto modo de transporte amigo do ambiente e sustentável.
Não podemos também esquecer os investimentos já aprovados na área do comboio ligeiro, Metro de Lisboa e Metro do Porto, quer na infra-estrutura, quer também no material circulante. No entanto, estas opções estratégicas ultrapassam as competências da PFP, mas isto não quer dizer que não possamos desencadear acções que apelem à adopção de decisões que promovam a utilização do transporte ferroviário. A PFP tem no seu seio imensas competências e o nosso objectivo é colocá-las ao serviço do sector ferroviário, do Governo e do país.
O transporte ferroviário é a mobilidade sustentável e segura que todos procuramos?
O transporte ferroviário desempenha um papel fundamental na coesão territorial do país, promovendo a mobilidade de todos os cidadãos. E aqui falamos do transporte ferroviário pesado, no comboio ligeiro (metro) e o tram (eléctrico), cada um deles com um grande contributo na mobilidade sustentável. Não tenhamos dúvidas de que o modo de transporte ferroviário contribui de forma decisiva para a mobilidade dos cidadãos. Já o disse, o modo ferroviário é um modo amigo do ambiente, sustentável, acessível, confortável e seguro, e não sou só eu que o digo.
O sector dos transportes representa 25% das emissões de gases com efeito de estufa da União Europeia, enquanto o transporte ferroviário é responsável por apenas 0,4% dessas emissões. Este sector também pode desempenhar um papel significativo no âmbito do turismo sustentável?
O diferencial assinalado é por si só significativo do seu papel. Importa agora que, no caso concreto do turismo, se criem as condições para efectuar a transição para a ferrovia do turismo que hoje utiliza outras formas de transporte, assim como adequar a oferta ferroviária a este tipo de público. Um bom exemplo disso foi a recuperação da CP de carruagens com condições ímpares para a promoção do turismo ferroviário na Linha do Douro com um sucesso sem igual.
Devido ao registo de um reduzido número de incidentes, o transporte ferroviário também é o modo mais seguro de transporte terrestre. É mesmo assim?
A segurança da circulação sempre foi, é e será um tema muito caro ao sector ferroviário. Não será por acaso que a União Europeia salienta os níveis de segurança do modo ferroviário. Os dados demonstram que, de facto, o modo ferroviário é um modo muito seguro e no qual os cidadãos podem depositar toda a confiança.
Em 2018, o Parlamento Europeu aprovou novas medidas para reforçar os direitos dos passageiros ferroviários. Essas estão já implementadas em Portugal?
O Regulamento tem aplicabilidade directa no território português, embora permita algumas isenções. Portugal aproveitou e alterou o seu regime jurídico adaptando-o ao Regulamento, de modo a tornar os dois regimes o mais próximos possível.
O Regulamento está a ser objecto de revisão tendo o Conselho Europeu já aprovado as alterações, que deverão ser adoptadas pelo Parlamento Europeu em segunda leitura antes de ser publicado no Jornal Oficial da UE. O Regulamento revisto entrará em vigor vinte dias após a publicação. Começará a ser aplicado dois anos mais tarde, com excepção dos requisitos em matéria de espaço para bicicletas, que serão aplicáveis quatro anos após a entrada em vigor do Regulamento.
Das alterações, destaco: os direitos das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida serão reforçados no futuro e as isenções para normas que abranjam estes passageiros deixarão de existir em 2023. A partir dessa data, o direito de receber assistência no embarque e desembarque aplicar-se-á a todos os comboios regionais e de longo curso na UE, sempre que haja pessoal qualificado em serviço. Outras melhorias incluem o direito de comprar bilhetes a bordo caso não haja uma alternativa acessível para os adquirir antecipadamente, uma melhor prestação de informações, a formação do pessoal e regras mais claras em matéria de indemnização por extravio ou dano de equipamento de mobilidade.
Para incentivar a mobilidade ecológica, passará a ser mais fácil para os passageiros transportarem as suas bicicletas a bordo. Uma cláusula de força maior relativa à indemnização aplicável aos serviços ferroviários por atraso virá conferir maior clareza jurídica e criará condições de concorrência mais equitativas em relação a outros modos de transporte a que se aplicam já cláusulas desse género.
Os caminhos-de-ferro ligam zonas remotas, assegurando a conectividade interna e transfronteiriça das regiões europeias. No entanto, apenas 7% dos passageiros e 11% das mercadorias viajam de comboio. O que há a fazer para mudar estes números?
O investimento é fundamental para promover a criação dos eixos de mobilidade das pessoas e bens, quer no material circulante, para que este seja atractivo e eficaz na sua função, quer na investigação, desenvolvimento e inovação. O sector ferroviário foi completamente esquecido nas últimas três décadas e isso traduziu-se num atraso que urge recuperar. E este atraso só se consegue recuperar com uma direcção estratégica clara e concreta, traduzindo-se numa aposta inequívoca no sector ferroviário.
Como analisa o transporte ferroviário durante a pandemia de Covid-19?
A Covid-19 trouxe-nos para um desconhecido. Houve necessidade de uma adaptação muito rápida às exigências de uma pandemia que nos colocou permanentemente sob uma pressão de se adoptarem em simultâneo as normas da DGS e garantir a oferta, para que as pessoas consigam as necessárias deslocações, sobretudo, de e para os seus locais de trabalho. As perdas do sector ferroviário face a 2019 são monstruosas.
Por exemplo, a nível europeu, houve uma perda de 24 mil milhões de euros, com uma redução de 42% na procura nos serviços de transporte de passageiros e de 2 mil milhões nas mercadorias. No entanto, em termos nacionais, a perda da procura situou-se a níveis muito superiores.
Por outro lado, a capacidade do transporte ferroviário de mercadorias tem a grande vantagem de apenas um comboio garantir o transporte de mercadorias que só poderiam ser transportadas por dezenas de camiões, diminuindo de uma forma clara os custos externos do sector rodoviário (congestionamentos, acidentes), além das emissões de CO2.
A crise da Covid-19 demonstrou que o transporte ferroviário pode garantir o transporte rápido de bens essenciais em circunstâncias excepcionais. Está a ferrovia a ser bem aproveitada?
Na verdade, poderia e deveria ser mais bem aproveitada, embora tenhamos a questão da limitação das infraestruturas. Daí que a interoperabilidade seja absolutamente essencial para garantir uma maior fluidez no transporte de mercadorias. Esta fluidez não é possível se, como acontece entre Portugal e Espanha, haja nas linhas convencionais uma alimentação diferente, cá os nossos comboios são alimentados a 25 kv/AC, em Espanha 3000 CC. Isto só por si é limitativo, pois a continuidade destes comboios só se consegue com mudança de tracção eléctrica nas fronteiras, o que encarece o transporte ou, em alternativa, a utilização de locomotiva Diesel, o que impacta com o compromisso do sector na redução das emissões de gases com efeitos de estufa. Mas de facto o que importa é que os operadores entendam que a ferrovia é uma alternativa viável e fiável, independentemente dos constrangimentos, porque só isso permite aumentar a quota modal.
O pacote legislativo visa a criação de um espaço ferroviário europeu plenamente integrado. Em Portugal temos essa consciência?
Quem não tiver, vai ter de mudar e passar a ter… vivemos num espaço comunitário comum, em que a mobilidade será obrigatoriamente integrada, com as vantagens que isto acarreta para todos, empresas e cidadãos. Não nos podemos esquecer de que estamos na ponta ocidental da Europa e quaisquer impedimentos ou atrasos a essa plena integração, mais nos isolará com os consequentes prejuízos.
A indústria ferroviária em Portugal está a atravessar um bom plano?
Sem dúvida. Há uma nova geração de ferroviários, dinâmicos, inovadores e sobretudo, com ambições no futuro ferroviário. A PFP é um exemplo claro disso.
A aquisição e preservação do conhecimento ferroviário são premissas fundamentais para o futuro do sector ferroviário nacional. Estamos a trabalhar no sentido de concretizar este objectivo?
A criação do Centro de Competências visa precisamente colmatar essa lacuna. O grau de especialização no sector é elevado, logo, todo o percurso desde a aquisição, a preservação e a transmissão do conhecimento é fundamental. Por isso, a promoção de cursos de formação técnica e o trabalho com a academia são fundamentais e é nesse sentido que estamos a trabalhar. Aliás, uma das actividades do CCF é precisamente a formação.
Com que associados a PFP conta para concluir os projectos com êxito?
A PFP conta com todos os seus associados sem excepção no sentido da prossecução dos interesses do sector a nível nacional e internacional. Todos são poucos para guindar o sector ferroviário ao nível que pretendemos. Todos precisamos de todos e com esta pandemia, todos estamos à espera de um novo amanhecer e de um mundo melhor do que aquele que tínhamos há cerca de um ano atrás. O sector ferroviário tem a obrigação de dar um contributo decisivo para a construção deste mundo melhor, não pode se é ficar à espera de que seja o pós-Covid a encarregar-se de repor a normalidade, antes, temos de ser proactivos na construção deste mundo novo.
In Eurotransporte n.º 120