A Inteligência Artificial ao serviço da operação logística
Trânsito, restrições de circulação, horários de entregas e um sem fim de condicionantes e imprevistos que teimam em acontecer diariamente podem tornar-se uma verdadeira dor de cabeça para os transportadores.
No sentido de resolver os problemas reais das empresas, Filipe Carvalho e Ana Sofia Pereira criaram, em 2003, a Wide Scope, que desenvolveu o Routyn, o único software que tem a capacidade contínua de se adaptar e assimilar a dinâmica da operação logística. O sistema, criado de raiz por ambos, “nos computadores lá de casa”, é hoje uma ferramenta imprescindível para mais de cem empresas no mundo, permitindo reduções de custos globais que rondam os 15%.
Ao longo dos últimos anos, Filipe Carvalho tem partilhado na rubrica «Tecnologias de Informação» da Revista Eurotransporte alguns dos desafios que já encontrou no trabalho de planeamento e optimização de rotas um pouco por todo o mundo. Nesta edição fomos saber junto do CEO e co-fundador da Wide Scope como tem sido o trabalho desta empresa nacional que já foi referenciada como uma das dez empresas que mais rapidamente cresceu em Portugal e uma das 500 que mais rapidamente cresceu na Europa, Médio Oriente e África.
Em que contexto nasce a Wide Scope?
A Wide Scope foi fundada por mim e pela Ana Sofia Pereira, em 2003, enquanto investigadores e mestrandos no Departamento de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Na altura tínhamos adquirido conhecimento científico nas áreas da Matemática Combinatória e da Inteligência Artificial que resolvem problemas reais das empresas. Por sua vez, apesar do avanço do state-of-the-art científico, observámos que as empresas não dispunham ainda de ferramentas que lhes permitissem beneficiar disso: reduzir custos e maximizar a sua eficiência operacional com tecnologia inovadora. Assim, quisemos fazer a ponte entre o melhor avanço da teoria científica nesta área e a prática da sua aplicação nas empresas.
Para aplicar a matemática ao sector dos transportes tiveram de fazer tudo de raiz. De que premissas partiram, se é que é possível explicar de forma simples?
Para o sector dos transportes criámos um produto, o Routyn, para o planeamento e optimização de rotas de veículos.
Na altura, enquanto empresa, começámos com uma mão cheia de nada. Não tínhamos mais do que os computadores lá de casa. E muito menos poderíamos criar um software que utilizasse licenciamento de terceiros pelo que todas as componentes tiveram de ser construídas por nós ou baseadas em software de código livre.
Do ponto de vista científico começámos com a aplicação de um conceito que mimifica um processo da natureza para resolver o problema (de complexidade exponencial) do planeamento de rotas. Já reparou como as formigas encontram sempre o melhor caminho entre o ninho e uma fonte de comida, de ida e volta? Apesar de serem praticamente cegas, conseguem comunicar com uma substância química (feromona) que vão depositando por onde se movem. Com movimentos por vezes errantes acabam por encontrar comida e depois seguem o cheiro das feromonas de volta para o ninho. Outras formigas acabam por encontrar esse caminho e ao fim de algum tempo toda a colónia converge para o caminho mais frequentemente «pisado» onde as feromonas são mais intensas, o caminho mais curto. A primeira versão do Routyn incluía uma colónia de formigas virtual que simulava isso mesmo para determinar os melhores planos de rotas de uma frota.
O Routyn é o produto-chave da Wide Scope. O que faz exactamente este software?
O Routyn em 2021 está muito mais avançado e tem muitos mais algoritmos de inteligência do que o primeiro, que nasceu em 2012. É um software de planeamento e optimização de rotas que considera uma frota e todas as suas características/limitações, um conjunto de entregas/recolhas/serviços a realizar em clientes, e desenha rotas - ou sequências de visita - para cada viatura de forma a que todos os serviços sejam realizados da forma mais eficiente possível.
O resultado final é um plano de rotas que utiliza o menor número possível de viaturas, que percorre as menores distâncias a fim de poupar combustível, e que respeita todas as regras e restrições da realidade da operação logística da empresa. O Routyn reflecte um modelo concebido inicialmente da realidade da empresa.
É pela realidade da empresa que começa o trabalho da Wide Scope com cada empresa. Como é feita a chamada fase de «modelação»?
A tradução da realidade logística para um modelo matemático que pode ser optimizado computacionalmente é o maior desafio para este tipo de sistemas. Se produzirmos um plano de rotas que viola regras logísticas, esse plano é inútil. E com ele o próprio software. Por isso, investimos fortemente na «modelação» da operação logística, que consiste na identificação e tradução de todas as regras e restrições que condicionam o planeamento e execução diário das rotas.
A distribuição está sujeita a inúmeras regras e restrições: as viaturas estão limitadas por capacidades de carga diferentes, os motoristas têm horários de trabalho limitados, as entregas têm janelas horárias de visita ao cliente, as estradas têm condicionantes, etc. O Routyn comporta centenas de regras granulares, por muito específicas que possam parecer, mas que, quando combinadas, permitem traduzir a complexa realidade da operação. Este trabalho é realizado entre um consultor logístico e os vários intervenientes na cadeia logística, como o gestor de tráfego (ou planeador de rotas), mas também o armazém e a própria administração da empresa (que define os objectivos de optimização a atingir). Quem planeia rotas tem as regras todas na cabeça, não no papel ou em nenhum sistema, ele simplesmente sabe-as. Sabe que o carro XPTO não pode descarregar na loja Y porque esta requer uma plataforma elevatória e o carro não a tem, por exemplo. O papel do consultor é fazer as perguntas certas de forma a que o gestor de tráfego seja levado a pensar em todas as condicionantes da operação. Até ao mais ínfimo pormenor que possa influenciar a viabilidade das rotas produzidas pelo Routyn.
Como é que o Routyn se adapta a esta complexidade e encontra a melhor solução para as especificidades, regras e condicionantes de cada tipo de transporte?
Esta é precisamente a questão que leva as pessoas a levantarem o sobrolho sobre a viabilidade de um sistema alguma vez conseguir modelar todas essas especificidades, regras e condicionantes. Por isso, erguemos o Routyn desde a primeira pedra sobre esta premissa: a ferramenta tem de ser flexível e escalável no conhecimento que pode abarcar. O resultado foi um motor de regras, uma das principais funcionalidades do sistema, em que o utilizador pode criar uma regra na sua linguagem natural (em Português, Inglês, Turco, etc.) e o sistema interpreta-a para o modelo matemático. Podemos por exemplo dizer “a viatura que transportar artigos químicos não pode transportar artigos alimentares” e o sistema sabe que não pode produzir uma rota onde há duas entregas com essas características. Por outro lado, o léxico de regras que o sistema entende cresce continuamente para que este entenda mais e mais conceitos. Uma vez modelada a realidade logística para uma representação computacional que um algoritmo possa optimizar, o Routyn dispara as suas técnicas de optimização matemática procurando atingir os objectivos que o utilizador solicitou, como minimizar custos, entre muitos outros disponíveis.
E como são geridas as condicionantes imprevisíveis, seja o trânsito, acidentes, ou encomendas de última hora?
O Routyn opera em dois modos: tempo de planeamento e tempo de execução. O tempo de planeamento acontece antes do tempo de execução, ou seja, eu hoje planeio as rotas que vou realizar amanhã. Quando estamos a realizar o planeamento hoje não sabemos ainda o que pode acontecer amanhã, por isso trabalhamos com estimativas e previsões. Assumimos uma imagem provável da realidade e consideramos os padrões de tráfego em cada estrada ao longo das horas do dia para produzir antecipadamente rotas que já vão considerar o inesperado do dia seguinte. Transformamos o inesperado do futuro em previsível hoje. No dia seguinte passamos ao modo de tempo de execução. Aqui é que podem surgir imprevistos e o Routyn tem mecanismos de reposta automática de forma a que se minimize o impacto (geralmente negativo) no plano inicial. Sun Tzu diz em “Arte da Guerra” que nenhuma estratégia sobrevive ao primeiro embate com o inimigo. Portanto, é necessário conceber imediatamente o segundo melhor plano, e o terceiro após este e assim sucessivamente à medida que os incidentes vão acontecendo e nos desviam da estratégia inicial. O Routyn segue o mesmo princípio. Por isso, temos funcionalidades como o modo «On The Road» em que o sistema planeia como fazer um serviço de realização urgente, mas que só nos chegou quando as viaturas já estavam todas em circulação. Este tipo de mecanismo é vital para operações logísticas com as dos nossos clientes de entrega de gás medicinal a pacientes em casa e em hospitais.
O planeamento e a optimização de rotas pode trazer reduções significativas no número de quilómetros percorridos e até no número de veículos utilizados. Quais foram as maiores conquistas das empresas com as quais trabalham?
Essas duas métricas são tipicamente as que atraem mais atenção. Temos clientes que reportam redução de 25% no numero de viaturas utilizadas e 10% nos consumos de combustível a par de um incremento muito considerável na eficiência da operação logística. Por exemplo, um cliente nosso no Reino Unido, a Snows Timber, foi galardoada precisamente por reportar estas métricas. Mas não é o mais normal. Aquilo a que estamos habituados são cerca de 15% de redução de custos globais da operação logística, ou incremento equivalente no volume de serviços realizados com os mesmos recursos. O Routyn é um sistema que se paga a si próprio em semanas.
O principal objectivo das empresas é a redução de custos ou já existem preocupações ambientais, nomeadamente redução de emissões ou transição energética pela renovação de frotas para veículos eléctricos, por exemplo?
A transição energética será uma preocupação quando as condições mais básicas estão asseguradas. E digo isto de forma transversal às sociedades, sendo que a indústria logística se enquadra naturalmente. Se não temos o que comer, o que vestir, ou as mais elementares condições de sobrevivência não vamos colocar o ambiente no topo das prioridades. O ambiente é importante mas virá sempre depois do estritamente essencial.
As empresas ainda lutam pela sobrevivência, em conseguir manter postos de trabalho e manter-se no activo. Renovar uma frota para veículos eléctricos só poderá ser uma prioridade se coincidir ser conveniente para a empresa. Este mesmo conceito verifica-se na economia das nações. Se for um país em vias de desenvolvimento só vai promover uma maior consciência ambiental depois de assegurar um nível mínimo de industrialização que lhe permita pensar para lá da sobrevivência do dia-a-dia. Por isso é preciso por vezes dar um passo atrás para dar dois à frente.
Qual foi o maior desafio, em termos de planeamento, que foi colocado ao sistema?
Um dos primeiros clientes ao ver as rotas produzidas pelo Routyn para a sua operação disse-nos que, apesar de serem extremamente eficientes em termos de kms percorridos e custo, não eram bonitas. Com isto ele queria referir-se a rotas que não se intersectem entre si, como se fossem pétalas de flores à volta do armazém, o que nem sempre é possível atingir considerando todas as restrições da operação, o que nos leva rapidamente a passar para desenhos de rotas mais «bonitos» do que outros. Ora, a dificuldade vem do conceito de «bonito». Porque o que é bonito para uma pessoa pode ser feio para outra. E para uma sistema matemático, o conceito de bonito não é propriamente um objectivo mensurável numericamente e que possamos dizer que um plano de rotas é melhor que outro em X unidades de beleza...
Mas lá encontrámos uma forma de expressar essa «beleza» numericamente e hoje é um dos objectivos de optimização mais utilizados pelos clientes do Routyn.
Quais são as grandes vantagens do Routyn face à concorrência?
Muitas das implementações que fazemos são a substituição de um outro sistema de planeamento de rotas adquirido anteriormente pelo Routyn. O Routyn ganha vantagem na premissa base em que foi construído: a operação logística não é estática, mas sim dinâmica e muda frequentemente. Por isso qualquer sistema que a modele tem de ter a capacidade contínua de se adaptar e continuar a produzir rotas optimizadas sob pena de passar a ser contraproducente em vez de ser uma ajuda. O Routyn é o único software que, tendo sido construído em cima de um motor de regras dinâmico, permite que as novas realidades da operação logística sejam rapidamente assimiladas pelo sistema, mantendo-se continuamente actualizado.
A pandemia foi uma oportunidade para as empresas de distribuição, mas também foi um momento difícil para algumas áreas que perderam negócio. De que forma o Routyn pôde ajudar ao longo deste último ano, tanto uns como outros?
O Routyn é um produto que serve essencialmente para reduzir custos. Quando as dificuldades apertam as empresas têm mais tendência para investir neste tipo de soluções. Este tem sido o panorama mais frequente desde o início da pandemia. No entanto, as empresas nem sempre têm tido meios para investir mesmo com a solução a pagar-se a si própria. Por isso decidimos avançar com um programa para ajudar empresas em dificuldades onde – mediante candidatura – facultamos o sistema e a nossa consultoria sem custos nem compromissos. É um programa que manteremos aberto enquanto a pandemia condicionar a viabilidade das empresas nacionais. Por outro lado, temos os clientes cuja operação logística cresce com a pandemia. O Routyn tem uma presença fortíssima por exemplo no retalho alimentar que tem estado sob elevada pressão logística com o aumento dos volumes a transportar, e temos ajudado a que esse incremento não se traduza em perda de eficiência e prejuízo.
A Wide Scope tem evoluído exponencialmente ao longo dos últimos anos e ate já foi referenciada como uma das dez empresas que mais rapidamente cresceu em Portugal e uma das 500 que mais rapidamente cresceu na Europa, Médio Oriente e África. Como explica este desenvolvimento?
O Routyn é um produto único. A Wide Scope procurou sempre obter um posicionamento único no mercado oferecendo a melhor solução disponível sem necessitarmos de adquirir clientes por preço. A competição pelo preço mais baixo é um jogo de soma nula. Somente a diferenciação da oferta permite atingir um posicionamento único no mercado imune à competição por preço. O crescimento contínuo neste contexto é natural (e quase inevitável).
Quais os principais objectivos que tem para a Wide Scope no futuro?
A Wide Scope pretende transformar o Routyn num serviço de carácter estritamente necessário para qualquer viatura gerida no contexto de uma frota profissional. Tal como hoje o seguro automóvel é obrigatório para garantir que uma viatura tem os seus riscos sempre cobertos durante a sua utilização, pretendemos que o Routyn seja o «seguro para a utilização eficiente» da viatura. Sem esse «seguro» a viatura não estará a ter uma utilização continuamente optimizada e eficiente, e portanto será mais caro do que não ter. Tal como acontece com o seguro automóvel em caso de colisão. Trabalhamos hoje para que todas as empresas possam adoptar esta tecnologia da forma mais simples e rápida no futuro.
O Routyn tem «headquarters» na Avenida da República, em Lisboa, mas conta com equipas na Austrália, Singapura, Turquia, Chipre, França e Inglaterra e ainda num «hub» técnico no Brasil. A presença nos Estados-Unidos e na África do Sul está agora a ser estabelecida. Nestes países contam com colaboradores locais que fazem a parte de consultoria de modelação na implementação do sistema, bem como a parte comercial, numa equipa global que totaliza cerca de 40 pessoas.
Diariamente cerca de uma centena de empresas já utiliza o Routyn, estimando-se que em redor de 50 000 viaturas no mundo já estejam integradas no sistema, percorrendo mais de 5 milhões de quilómetros por dia em rotas optimizadas.