"Vivemos tempos apaixonantes e desafiantes no setor marítimo"
Confira a entrevista de António Belmar da Costa, diretor-geral da AGEPOR - Associação dos Agentes de Navegação de Portugal, publicada na edição 126 da Eurotransporte.
O mundo do shipping e da logística nunca viveu um período como o atual. A pandemia veio revolucionar modelos de negócio e obrigou os agentes económicos a adaptarem-se a uma nova realidade para fazerem chegar as cargas aos seus destinos. António Belmar da Costa, diretor-geral da Associação dos Agentes de Navegação de Portugal, revela quais os desafios que o setor enfrenta.
Eurotransporte – Uma das principais consequências da pandemia foi a disrupção das cadeias logística e de abastecimento a nível mundial. Como é que os agentes de navegação estão a lidar com as alterações profundas que surgiram no mercado e que tiveram particular incidência no setor do shipping?
António Belmar da Costa – O que está a acontecer no setor nunca foi antes experienciado. Vivemos tempos desafiantes. Mas a pandemia apenas veio por a nu uma série de situações que julgávamos estar resolvidas e não estão. Por outro lado, houve a perceção global de que não podemos estar tão dependentes daquilo que é produzido na China. Hoje em dia, o papel do agente de navegação é diferente do que era no passado. Já não se limita a atender navios, a tratar das tripulações, das cargas e da área comercial dos navios. Atualmente, a atividade do agente de navegação espraiou-se pela cadeia logística. Obviamente que a falta de equipamentos, de regularidade e previsibilidade dos serviços nos atinge porque nunca sabemos se vamos ter as escalas dos navios programadas, espaço nos mesmos ou ainda contentores em stock para disponibilizar. Tudo na nossa atividade passou a ser um pouco mais incerto. Por outro lado, os desafios logísticos passaram a ser mais prementes porque há que encontrar, entre uma multiplicidade de fatores, os melhores caminhos e soluções possíveis para que as cargas cheguem ao seu destino.
Devido à pandemia, o preço dos fretes marítimos aumentou para níveis históricos e em 2021 os armadores registaram lucros nunca antes vistos. Os agentes de navegação, como representantes dos armadores, beneficiaram desta situação?
Os agentes de navegação não beneficiam grandemente dos lucros que os armadores têm. Nos acordos/contratos estipulados entre os agentes e os armadores, os valores são muitas vezes fixos e cada vez menos percentuais, ou seja, não variam com o nível de fretes. Logo a rentabilidade do nosso negócio não subiu por esse fator. Não é expetável por parte do mundo do shipping, embora nós assim muito o desejássemos, que a remuneração do agente de navegação possa oscilar em função do lucro dos armadores. E como a concorrência é enorme, os agentes de navegação têm uma posição cada vez mais frágil nesta vertente. Foi por isso que tiveram de ir procurar maiores rentabilidades ao longo de toda a cadeia logística e não só no negócio puro e duro do agente de navegação. Começámos, por exemplo, a fazer, com muito maior incidência, o «porta-a-porta» e a oferecer soluções multimodais e serviços de valor acrescentado à carga e aos clientes.
O papel do agente de navegação está a migrar para o de transitário?
Uma parte significativa dos nossos associados é também associada da APAT. Muitos deles têm inclusivamente mais negócio nessa área do que na tradicional do agente de navegação. Mas isso já acontecia e a pandemia só veio acentuar ainda mais essa situação. Há uma concentração no mercado e os armadores são cada vez menos mas mais fortes. E os chamados «agentes terceiros também são cada vez menos. Portanto, só consegue sobreviver quem alterar ou expandir o seu modelo de negócio, individualizando soluções tipo chave-na-mão para cada caso. Atualmente, quem pode ganhar mais são aqueles que conseguem operar em todas as vertentes da área logística tirando também partido de terem a componente de agente de navegação na sua carteira de oferta.
Como se explica aos clientes o crescimento desenfreado do preço dos fretes praticados pelos armadores?
O preço dos fretes não podia deixar de aumentar. Este é um «jogo» da oferta e da procura e os armadores, depois da crise de 2008, perceberam (ou parecem ter percebido) que não podiam expandir a oferta infinitamente numa lógica de quota de mercado, mas sim olhar para a rentabilidade do seu negócio. Quando a pandemia teve início na China, os armadores encostaram os seus navios e o Mundo (entenda-se o transporte marítimo) praticamente parou nessa altura. Em março, a China começa a retomar e a exportar para a Europa e Estados Unidos. Aconteceu que estas regiões do mundo, entretanto entraram em confinamento e deixaram de produzir bens.
Desta forma os contentores que chegavam da China a um ritmo cada vez maior começaram a retornar vazios e a amontoar-se nos portos de chegada, fazendo falta nos portos de partida onde as exportações chinesas conheciam um perfeito «boom». Pressionados pela escassez de contentores na China e também falta de espaço disponível nos navios, os exportadores chineses começam a entrar numa lógica de leilão para conseguirem espaço/contentores. Desta forma pressionaram, como não há memória, a procura e elevaram o nível dos fretes para valores impensáveis. Como o ciclo de uma viagem redonda dos contentores aumentou consideravelmente em vários dias, os armadores perceberam que valia mais a pena em termos económicos não completar nos EUA/Europa o ciclo da exportação (não esperar por carga) – até porque os portos estavam muito congestionados - para os enviar novamente cheios para a China. Portanto, os armadores optaram por fazer viagens (blank sails) quase que inteiramente de contentores «vazios» para a China, porque era lá que eles eram precisos e era lá que se obtinham os melhores fretes. Logo que as economias do Ocidente abrem e começa a haver exportações, a falta de equipamentos no Ocidente levou a uma nova pressão nos fretes que passaram também a subir na pernada para a China. Finalmente os portos na Europa e principalmente nos EUA começaram a ficar congestionados originando muitos dias de espera dos navios originando custos acrescidos que passaram também a refletir-se nos fretes. Para a tempestade ser perfeita contribuiu o facto de os portos nos EUA não trabalharem 365 dias por ano, o decréscimo do número médio de trabalhadores portuários e de motoristas de camiões em virtude das quarentenas e o encerramento, ainda que temporário de alguns terminais ou mesmo portos inteiros na China (quarentenas). Resta dizer que em todo este tempo a procura no Ocidente não diminuiu nunca e as exportações chinesas conheceram em 2021 um crescimento de 20%.
Quando é que os preços dos fretes irão normalizar?
A pressão começou a diminuir, ainda que timidamente, há dois, três meses, mas os preços dos fretes nunca mais vão voltar ao que eram. Os armadores aprenderam há vários anos que a oferta tem de estar minimamente controlada e não pode crescer sempre. O próprio modelo de negócio que era baseado em navios cada vez maiores e assente no pressuposto que tudo era produzido no Oriente e exportado para o Ocidente parece ter começado a mudar. E tem influenciado, ainda que timidamente, a tipologia de navios agora encomendados. Hoje parece que a grande preocupação nas encomendas já não é tanto os navios de contentores cada vez maiores, mas começamos a ver ordens de encomenda de navios mais pequenos (ainda que de grande capacidade). Começou-se a perceber que esta nova «ordem estratégica mundial» ao nível da produção/consumo vai muito provavelmente alterar-se, ainda que isso leve algum tempo.
Essas alterações terão de estar suportadas na chamada reindrustrialização do Ocidente?
Os países do Ocidente já perceberam que não só vale a pena produzirem, ao invés de darem a produção a terceiros, como estrategicamente estavam a incorrer no enorme risco de ficarem reféns de regimes e economias que não controlavam. Veja-se o que aconteceu na indústria automóvel com a questão da falta dos chips. Todo o mercado da eletrónica está altamente dependente da China. E eu acredito que isto vai mudar.
Se já não é preciso ganhar escala no transporte para baixar os custos, provavelmente não precisaremos de navios tão grandes. Por outro lado, e em consequência dessa mudança de paradigma o mercado da distribuição regional vai crescer e continuar a ter um peso cada vez maior…
Esta pode ser uma grande oportunidade para alavancar o transporte marítimo de curta distância na Europa?
Não tenho dúvidas nenhumas que a próxima grande «explosão» vai ser no transporte regional e marítimo de curta distância. E Portugal pode beneficiar muito com isso, porque estamos bem localizados no sentido de podermos redistribuir e servir o mercado regional e europeu. Como os navios que servem esses mercados não são tão grandes poderão escalar mais portos portugueses. Neste momento apenas Sines tem condições para receber os grandes navios. Portanto, poderão surgir novos serviços em mais portos portugueses nessa ótica regional.
Para que isso aconteça é necessário ter um circuito logístico muito bem montado, suportado em software e soluções tecnológicas de vanguarda e ao mesmo tempo encontrar vantagens operacionais que nos diferenciem positivamente.
Nesse capítulo já demos prova que somos muito bons e para o provar temos os casos da JUP e agora da JUL.
Na opinião da AGEPOR, como está a correr o processo de implementação da JUL – Janela Única Logística?
É um processo que todos gostariam que fosse mais rápido, mais intenso e que não causasse tanta perturbação. Sabemos, no entanto, que não é fácil, até porque temos estado bastante envolvidos nos portos onde a JUL começou a ser implementada, mas é importante que todos tenham a noção que muito do nosso sucesso futuro estará assente neste tipo de ferramenta. O processo está atrasado, falta ainda integrar uma parte significativa dos parceiros da cadeia logística e de abastecimento, mas o caminho está a ser feito e apesar das dificuldades tenho a certeza de que com a ajuda de todos chegaremos lá. Já foi assim com a JUP e será assim com a JUL.
Vivemos cada vez mais num mundo digital, onde a internet e as tecnologias de informação e comunicação têm influenciado e transformado a nossa forma de viver e trabalhar. Os agentes de navegação têm acompanhado esta tendência?
Há muitos anos que assim é, principalmente desde o início da contentorização. Os agentes de navegação estiveram sempre muito avançados nessa área e de certa forma estamos formatados para abraçar tranquilamente e com entusiasmo estes desafios da digitalização. A pandemia veio provar isso. Fomos todos para casa, mas os navios e as cargas chegaram ao seu destino, porque tudo estava preparado tecnologicamente para que isso acontecesse. Durante todo este período exportadores e importadores contaram sempre com a ajuda e profissionalismo dos agentes de navegação. Julgo que nem notaram que a maior parte do trabalho foi feita pelos nossos colegas a partir de casa.
E como fica a outra parte, o lado humano e do contacto direto e pessoal com os clientes, algo que sempre caracterizou a vossa atividade?
É óbvio que houve mudanças e as coisas nunca mais serão como eram. A interação e o contacto entre as pessoas são absolutamente essenciais e fazem parte da nossa cultura. Mas o valor desse contacto perdeu alguma força neste período em que estivemos/estamos condenados a quase só nos vermos através de um ecrã ou ouvir-nos por uma linha telefónica. Agora que parece estarmos finalmente a caminhar para o fim da pandemia é importante referir que no futuro quem conseguir conjugar as duas vertentes (tecnológica/digital e humana) vai ficar numa situação de vantagem. O futuro vai passar sem dúvida pela automatização e robotização mas o olhar, o toque, a emoção e a empatia vão continuar sempre a fazer a diferença.
Muitos portos europeus já apostaram nessa vertente mais automatizada e mais tarde ou mais cedo essa tendência também chegará a Portugal. O setor está preparado para essa mudança, nomeadamente ao nível da mão-de-obra portuária?
Não tenho dúvidas que chegará a Portugal. Não hegou mais cedo por uma questão de escala, uma vez que esses equipamentos ainda são muito caros. O que eu vou dizer pode parecer chocante, mas no futuro as greves da estiva vão deixar de ser um problema. Aconteceu o mesmo no passado quando as fábricas começaram a ser robotizadas. É triste perceber que não houve uma evolução por parte de quem detém o conhecimento deste tipo de trabalho, no sentido de se reformatarem e talvez poderem ajudar com a sua experiência os novos sistemas e organização do trabalho que permitem, numa ótica de competitividade global, a otimização das operações portuárias. Talvez não fosse possível que todos pudessem dar este salto, até porque a nova realidade surgiu muito rápida não dando tempo ao estudo e à formação necessária para a acompanhar. Estou consciente que este é um problema e um desafio que não é só deste setor mas de todos os setores. Estas pessoas não podem ficar para trás, e já que, muito provavelmente, não conseguirão entrar no mercado de trabalho da nova economia, o mínimo que se pode fazer por elas é encontrar as soluções que lhes permitam ter uma vida digna. Não tenho dúvida que, muito provavelmente, as soluções passarão por uma incidência fiscal sobre a automação/robotização.
Recentemente, a AGEPOR congratulou-se com os investimentos que estão a ser realizados em Portugal no domínio marítimo-portuário…
Finalmente, depois de uma estagnação, estão a ver-se alguns factos positivos a acontecer nos portos. Muito recentemente a AGEPOR emitiu um comunicado sobre isso e é de referir que estes projetos em curso são fruto do trabalho que tem vindo a ser realizado. É importante deixar claro o nosso otimismo e olhar para o futuro de uma forma positiva. Aliás, este é um setor que, ao contrário de tantos outros, nunca teve nas últimas décadas verdadeiramente uma forte crise no nosso País. Durante a pandemia tivemos menos escalas de navios, o que reduziu uma parte do «income», por outro lado, a redução de muitos custos - as viagens, refeições, material de escritório, eletricidade, etc - acabou por compensar a perda de receitas. A nível global, o setor marítimo-portuário tem sido privilegiado, porque as mercadorias têm sempre de chegar ao seu destino. O nosso setor não fechou em lado nenhum. Fomos todos para casa mas continuámos a fazer negócios. Nós vivemos tempos apaixonantes nesta área, cheios de desafios, de coisas novas; o termos de mudar o nosso paradigma a todo o momento, o termos de pensar completamente «fora da caixa» em alguns casos é seguramente um atrativo extra da nossa profissão.
O que falta fazer para melhorar as acessibilidades aos portos nacionais?
Falta fazer ainda muita coisa. Uma das nossas grandes preocupações é o possível fecho do complexo ferroviário da Bobadela. Percebemos hoje que há uma parte (zona Norte) daquele complexo que irá garantidamente ficar operacional por mais quatro anos e que pode suportar as necessidades existentes. Mas não chega, é preciso que esta continuidade se estenda até se encontrarem outras soluções viáveis. Sabemos, até porque temos participado, que a IP está a trabalhar com os agentes económicos para encontrar uma localização alternativa. Mas este é um porto seco essencial para a região de Lisboa e também para todo o país. São estas indefinições que prejudicam gravemente o setor, porque não há um plano estratégico e uma garantia de continuidade no médio longo prazo. Era muito importante para a região de Lisboa e Setúbal ter uma definição sobre qual vai ser o seu futuro em termos portuários.
De que forma essa falta de estratégia afeta os nossos portos e a Economia nacional?
Afeta a nossa competitividade e imagem. Não é possível promover e vender um porto, como por exemplo Lisboa, quando os armadores sabem de antemão que esse porto está em greve, que tem um histórico maldito de greves, ou que não existe há já alguns anos um plano estratégico que lhes permita incluir Lisboa quando desenha a rotação dos seus navios. Neste momento, se um porto quiser desenvolver-se não pode cingir-se ao local onde está, mas tem que estar presente em toda a sua área de influência, ou mesmo em novas áreas onde seja possível penetrar. É o que está a fazer Leixões, ao assumir a gestão do terminal ferroviário da Guarda.
Em julho de 2021, a UE lançou o plano “Fit for 55”, que visa reduzir os gases com efeito de estufa em 55% até 2030. O setor do transporte marítimo foi incluído neste plano ambicioso e já se levantaram muitas vozes contra a proposta…
As questões ambientais são extremamente importantes e alguma coisa tem de ser feita para mudar a atual situação. Mas não se pode querer mudar tudo de repente, porque terá um grande impacto nos custos das empresas e na Economia em geral. Não é possível recuperar num curto espaço de tempo todas as asneiras que a Humanidade fez ao longo de mais de um século. E na minha opinião este plano é ambicioso demais e até mesmo irrealista. Em primeiro lugar acho que a Europa não deveria correr sozinha, porque os outros países que não adaptarem estas restrições vão tirar vantagens concorrenciais. Estamos a falar de uma revolução que passa pela renovação de uma parte importante da frota de navios em apenas oito anos e não nos podemos esquecer que os maiores armadores de contentores do mundo são europeus. Vamos ficar perfeitamente desajustados e criar custos que depois terão que ser forçosamente e diretamente aplicados no consumidor final. Além disso, não sabemos qual será o combustível que vamos ter no futuro, porque a tecnologia ainda não respondeu devidamente a essa questão. Esta é uma questão política da Europa, que coloca a sustentabilidade ambiental acima de todas as outras questões. Eu, há muitos anos que defendo que não podemos deixar às próximas gerações um mundo pior do que nos foi legado. Temos até, na minha opinião, que lhes deixar um mundo melhor e sobretudo a esperança que isso irá ocorrer. No entanto, e embora esteja a ser politicamente incorreto (os cabelos brancos ajudam a já poder dizer sem medo o que se pensa) afirmo sem receio que há um irrealismo enorme no Fit for 55 e o que vai acontecer é que este plano vai ser “empurrado no tempo com a barriga”, à semelhança do que aconteceu com os outros planos e objetivos ambientais. E trabalhar assim não é sério. Pode parecer desajustado ou até antiquado ao pensamento corrente e seguramente dá menos votos, mas aposto que no fim do dia é o que irá acontecer.
Autor: PCP