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Fundo Ambiental pode apoiar a transição energética na ferrovia

08 setembro 2022

Entrevista com Miguel Rebelo de Sousa, Diretor- executivo da Associação Portuguesa de Empresas Ferroviárias (APEF).

Para a Associação Portuguesa de Empresas Ferroviária (APEF) o crescimento do setor irá dar-se através da transferência de cargas do camião para o comboio. No entanto, a subida dos custos energéticos tem colocado em causa a competitividade da ferrovia e a estratégia de transferência modal. Os operadores exigem mais apoios financeiros por parte do Governo para assegurar a sustentabilidade económica e a transição energética do setor, à semelhança do que está a ser feito no resto da Europa. A EUROTRANSPORTE esteve à conversa com Miguel Rebelo de Sousa – Diretor-Executivo da APEF para saber mais sobre este assunto. 

Há cerca de um ano, a Medway e a Takargo oficializaram a criação da APEF. Quais são os objetivos e missão desta associação?
A APEF tem o objetivo de defender os interesses dos operadores ferroviários, e tem por missão o garantir o aumento da competitividade do transporte ferroviário, elaborando propostas para uma regulação que promova uma redução de custos de contexto e garanta níveis adequados de concorrência, contribuindo para uma priorização de investimentos que consolidem a ferrovia como meio de transporte mais eficiente e sustentável, em condições de segurança, com uma coordenação setorial. Queremos contribuir para garantir que é tão fácil um comboio operar na rede ferroviária como é hoje em dia um camião operar na rede rodoviária.

Atualmente, apenas possuem três associados: a Medway, a Takargo e a Captrain Espanha. A APEF pretende aumentar este número?
A APEF é uma associação aberta e interessada em agregar o máximo de entidades que o pretendam e se revejam na defesa da competitividade do transporte ferroviário. Esperamos em breve contar com mais associados, mas hoje já representamos todos os operadores ferroviários de mercadorias.
Recentemente, a Takargo foi adquirida pela Captrain Holding, cujo capital é detido pela SNCF.

Considera que o mercado nacional, dada a sua dimensão e características, tem capacidade para absorver mais operadores ferroviários?

O processo de aquisição da Takargo pela Captrain está prestes a ser finalizado. O mercado natural das empresas de transportes ferroviários é o mercado ibérico, vai para além do nacional. E temos de ter isso presente nos dias de hoje, pelo que não vejo razão para não existirem mais operadores ferroviários a operar. O mercado nacional tem potencial, pode e deve alavancar o investimento que o país tem feito com o Ferrovia 2020 para potenciar o tráfego ferroviário.

Estão a decorrer importantes e avultados investimentos na ferrovia, como é o caso do plano que acabou de referir «Ferrovia 2020». Segundo a IP, a sua conclusão irá permitir duplicar a atual capacidade da rede para o transporte de mercadorias. De que forma estes investimentos podem potenciar a competitividade do transporte ferroviário de mercadorias?
É um facto que o Plano Ferrovia 2020 tem como propósito o aumento de capacidade da rede, investindo em melhorar a infraestrutura, de forma a potenciar o transporte de mercadorias. Sendo possível a operação de comboios de mercadorias até 750 metros de comprimento nos Corredores Internacionais e sinalização elétrica nova em todos os eixos principais da rede, isso vai representar efetivamente um aumento de capacidade da rede como um todo, indo ao encontro das necessidades dos operadores.

O que esperam do futuro e já anunciado Plano Ferroviário Nacional?
Deverá ser um plano estratégico nacional para identificar que serviço de transporte ferroviário se pretende ter no país em 2050 e o que é preciso fazer para o tornar possível. Não é apenas identificar os investimentos em infraestrutura que se pretende fazer, é também saber que serviço se pretende ter, como este poderá ser potenciado, o que é preciso evoluir em termos de terminais de mercadorias, para potenciar a interoperabilidade, como melhorar a operação da rede como um todo, até no que diz respeito a regulação.

O Governo português anunciou publicamente que existe o objetivo de duplicar a atual quota modal do transporte ferroviário de mercadorias, que se situa nos 15%, até 2030. Qual será a estratégia dos operadores nos próximos oito anos para chegar aos 30% de quota de mercado?
É importante haver uma estratégia deliberada, coerente e consistente de investimento na transferência modal para o transporte ferroviário. Da parte dos operadores, estamos a investir fortemente em apresentar aos nossos clientes soluções integradas de transporte, que vão ao encontro das suas necessidades, alinhadas com os objetivos de promoção da sustentabilidade e do transporte sustentável…

E a transição energética pode ter um papel importante nessa estratégia?
Claramente e vai ao encontro da estratégia europeia. Vale a pena lembrar que outros países europeus desenvolveram também uma estratégia de incentivo à transferência modal, apoiando financeiramente a transição energética associada, o que também deveria ser o caso de Portugal, para permitir investimento em automotoras elétricas, em sistemas de sinalização, permitindo assim aumentar a competitividade da ferrovia face à rodovia, por exemplo. Aliás, o Fundo Ambiental implementado pelo Governo português, tem precisamente esse propósito. Não está é a ser utilizado com base nesta estratégia, o que nos causa alguma estranheza. O Fundo Ambiental é o instrumento que nos parece mais adequado para apoiar as empresas nesse esforço de investimento que é preciso realizar para o setor como um todo se tornar mais eficiente, mais sustentável.

A subida dos custos energéticos e dos combustíveis está a colocar em causa a competitividade do transporte ferroviário de mercadorias em Portugal. O Governo espanhol anunciou ajudas financeiras diretas aos operadores ferroviários privados que operam no país, como forma de os compensar pelo aumento do custo do gasóleo e da energia elétrica. Esperam que em Portugal sejam tomadas medidas de apoio similares às que foram adotadas em Espanha?
Já transmitimos ao Governo português essa preocupação. Neste momento, com as condições atuais, e sem qualquer apoio financeiro, a probabilidade de haver transferência modal da ferrovia para a rodovia acentuou-se, pondo em causa anos de trabalho dos operadores a criarem condições para se trocar camiões por comboios. O Governo português está a avaliar as nossas propostas. É importante realçar que foram implementadas medidas de apoio à rodovia em Portugal e à ferrovia em Espanha, que são a concorrência dos nossos Associados, e isso desvirtua a concorrência se não houver apoios semelhantes aos operadores ferroviários nacionais. O Governo espanhol reconheceu a importância de implementar apoios aos operadores, esperamos que o Governo português também reconheça essa importância, não só para apoio conjuntural para fazer face a este aumento avassalador de custos, mas também para apoiar o investimento na transição energética que se pretende que aconteça até 2030.

Atualmente, a IP detém os direitos de aquisição e distribuição da energia elétrica que alimenta a rede ferroviária nacional. A APEF defende que essa negociação deveria ser realizada pelos operadores?
Sim, defende. Está em curso um Grupo de Trabalho liderado pela Autoridade para a Mobilidade e dos Transportes (AMT), com o objetivo de definir as condições que permitam aos operadores escolherem o fornecedor de energia elétrica que pretendam. Os operadores, hoje em dia, estão confrontados com a energia elétrica contratada e fornecida pela IP e pela CP, que são entidades públicas sujeitas ao CCP e que não permitem, dessa forma, que qualquer operador possa escolher o seu fornecedor, de acordo com os termos que acordarem, por exemplo, para adquirirem 100% de energia verde, caso o pretendam. É uma rubrica importante dos custos operacionais dos operadores, de cerca de 30% dos custos, sobre os quais não têm qualquer palavra a dizer, nem forma de gerir esses custos e o risco associado. Não faz sentido. Desde que existam condições operacionais que o permitam, deveria ser liberalizado. E essas condições existem.

A Linha da Beira Alta irá estar encerrada durante um período de nove meses devido às obras de modernização previstas no Ferrovia 2020. Entretanto, até ao momento, a IP e os operadores ainda não chegaram a acordo sobre as compensações pelos sobrecustos do encerramento da linha. O que está em causa e quais são as reivindicações dos operadores?
Está em causa o encerramento integral da Linha da Beira Alta por nove meses por decisão da IP, de forma às obras planeadas para a Linha serem mais eficientes, o que levará os operadores ferroviários a incorrerem numa série de custos adicionais para poderem manter a sua atividade. É crítico que as obras durem o prazo planeado e que os operadores não percam clientes em resultado desta intervenção. Os operadores pretendem apenas que estes constrangimentos sejam neutros para os seus clientes. Cada transporte de mercadorias terá um custo adicional por se realizar pelas vias alternativas, em várias dimensões, desde custos com pessoal e com estrutura, com combustíveis, até com taxa de uso de infraestrutura, que, se repercutirmos nos nossos clientes, perderemos competitividade e os clientes transitarão para a rodovia. Com a IP a assumir esses custos adicionais, vamos procurar garantir que os nossos clientes, apesar da degradação do serviço prestado, não troquem o transporte ferroviário pelo rodoviário.

O Terminal da Bobadela, o maior e mais importante porto seco nacional, irá encerrar até 2026 devido à realização das Jornadas Mundiais da Juventude. Quais os impactos desta medida para o setor?

É uma medida que não é coerente com o investimento que se tem feito ao abrigo do Ferrovia 2020 e na aposta no crescimento do tráfego ferroviário. Uma das condições para o aumento da competitividade da ferrovia é o existirem terminais com capacidade. O Terminal da Bobadela é o principal Terminal que serve a Área Metropolitana de Lisboa. Mais importante que a decisão de encerramento, preocupa-nos não haver ainda apresentada uma alternativa credível, com um plano de ação que permita substituir o Terminal da Bobadela em 2026. Não existir um terminal de carga que sirva esta parte do país põe em causa a estratégia que foi desenvolvida para potenciar o transporte de mercadorias.

A IP anunciou que está a realizar um estudo para a nova localização do terminal da Bobadela, mas a construção de raiz de um projeto com estas características deverá levar vários anos a concretizar-se. Corremos o risco de não existir nenhum terminal multimodal rodoferroviário na região de Lisboa após o fecho da Bobadela? E os opera dores têm alguma localização preferida?
É essa a nossa principal preocupação relativamente a este tema. É importante que se tomem as decisões necessárias rapidamente, para não ficarmos numa posição de incerteza. Os operadores não têm de ter uma localização preferida, nem pretendem entrar nesse debate, têm é de ter disponível um Terminal com as condições adequadas para favorecer a intermodalidade e com capacidade para dar resposta às necessidades do mercado. Podemos apenas sugerir que, tendo em consideração que este Terminal deve servir Lisboa, seria desejável do ponto de vista da eficiência que se localizasse na margem norte do Rio Tejo.

Na opinião da APEF qual seria o melhor modelo de gestão para os terminais que são geridos pela IP? E como veem o facto de a APDL ter ficado com a gestão dos terminais de Leixões e da Guarda?
Tanto faz o modelo de gestão dos terminais ser público ou privado, ser uma entidade pública ou privada a gerir os terminais não é claramente o fator mais relevante. O importante é que dê resposta às necessidades do mercado. Tem de gerir o Terminal de forma independente, procurando prestar os serviços que os operadores necessitam, de acordo com as necessidades do mercado, de forma a potenciar e alavancar o crescimento de transporte de mercadorias, ao serviço da economia nacional.

Fotos: Bruno Marreiros

*Entrevista originalmente publicada na edição número 128 da Eurotransporte


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