Telemóvel ao volante é perigoso. Mito ou realidade?
Infelizmente a sinistralidade automóvel e o número de vítimas dela resultante tem vindo numa triste tendência de aumento mês após mês.
Foto: Alexandre Boucher on Unsplash
Como "previsto" em textos publicados neste espaço desde 2016, claramente se entendia há muito que a diminuição do número de acidentes entre 2010 e 2017 resultava da diminuição do volume de tráfego nas estradas portuguesas provocada pela crise económica.
Aparentemente ainda ninguém indicou as causas deste aumento, mas aponta-se o uso do telemóvel como o grande flagelo da sinistralidade rodoviária em Portugal. A base da argumentação é empírica pois como dizem "basta ir para a rua para vermos imensos condutores agarrados ao telemóvel enquanto conduzem!" e todos os estudos indicam como é perigoso falar ao telemóvel.
Mas daí até se inferir que é o uso do telemóvel que provoca a mortalidade rodoviária, vai um passo de gigante. Surpreendentemente nenhuma estatística ou dados da sinistralidade demonstram ou relacionam objectivamente o telemóvel com o aumento dos acidentes com vítimas mortais nas estradas portuguesas. Encontram-se disponíveis inúmeros estudos que relacionam o telemóvel com o aumento da distracção e, consequentemente, com o risco de acidente quando utilizado durante a condução.
Um estudo australiano estimou em 25% o número de acidentes rodoviários motivados pela distracção do condutor, indicando que apenas 30 a 40% destes são resultado do uso do telemóvel. Ou seja, apenas cerca de 9% do total de acidentes poderão ser causados pelo uso do telemóvel.
Segundo a NHTSA cerca de 10% dos acidentes com vítimas mortais ocorridos nos EUA em 2017, tiveram origem na distracção dos condutores e destes, apenas 14% são motivados pelo uso indevido do telemóvel. Ou seja, somente 1,4% dos acidentes mortais terão uma relação directa com o uso do telemóvel.
Porquê então esta perseguição ao telemóvel? Ninguém tem dúvidas que o telemóvel, ou antes o "smartphone", equipamento multimédia e multifunções que cada vez mais gere a nossa vida em todas as suas vertentes, veio para ficar e em todo o lado, mesmo dentro do carro. Aliás, os nossos carros, mesmo sem o telemóvel ligado, já possuem inúmeras funções, sistemas e aplicações que exigem recursos atencionais extraordinários aos condutores.
Todos os estudos acerca do uso do telemóvel (ver tabela) demonstram que falar ao telemóvel, mesmo com sistema mãos livres, é perigoso. Mais perigoso do que conduzir com 0,5 g/l de álcool no sangue ou sob efeito da cannabis, podendo aumentar em mais de 25% o tempo de reacção do condutor. No entanto falar ao telemóvel com um sistema mãos livres é permitido e legal, talvez porque não é controlável pela polícia.
A distracção do condutor é uma condição que ocorre quando a atenção necessária para conduzir é desviada para outra coisa ou para outra tarefa e pode ser de ordem visual, cognitiva, auditiva e/ou manual. A distracção visual, que ocorre quando o condutor deixa de olhar para a estrada, é a mais perigosa, em especial quando coincide com um evento perigoso ou provoca a capacidade de controlar a trajectória do veículo. Algumas tarefas efectuadas durante a condução resultam em diversas perturbações e são denominadas de "duplas tarefas", como por exemplo:
- Falar ao telemóvel (com sistema mãos livres); provoca o efeito de "olhar e não ver", ou seja, uma afectação cognitiva e/ou auditiva reduzindo a capacidade de ouvir sinais sonoros externos
- Falar ao telemóvel (com telemóvel na mão); provoca uma afectação cognitiva, auditiva e manual pois impede a utilização de uma das mãos e o potencial desajustamento de uso da outra mão, em especial em situações críticas
- Ler o número ou o nome de quem chama (quando o telemóvel toca); afecta a capacidade visual e cognitiva pois o condutor não vê o que se passa na estrada e, durante uns momentos, olha mas pode estar distraído com a expectativa do conteúdo da chamada
- Ler mensagens no telemóvel; provoca uma afectação visual e cognitiva porque o condutor não vê o que se passa na estrada
- Escrever no teclado do telemóvel (texting); implica uma afectação visual, manual e cognitiva pois o condutor não vê o que se passa na estrada e utiliza uma mão fora do volante
E ainda, mesmo depois de desligar uma chamada telefónica enquanto conduz, fica com a capacidade cognitiva reduzida (olhar e não ver) por um período que pode durar vários minutos.
Neste contexto o uso do telemóvel durante a condução, motivado pelos diversos factores de perturbação, pode provocar um aumento do tempo de reacção do condutor:
Ou seja, um condutor que circule a 90 km/hora, se tiver de travar perante a paragem inesperada do veículo da frente, demora em média cerca de 1 segundo em condições normais de atenção, e pode iniciar a travagem cerca de 25 metros após o momento da detecção do perigo. Mas se estiver a falar ao telemóvel, seja de que forma for, essa distância pode aumentar entre 6 a 11 metros.
Contudo, e apesar dos dados científicos que demonstram a perigosidade das duplas tarefas, não nos parece que seja o telemóvel a maior causa da sinistralidade nem da mortalidade rodoviária em Portugal ou em qualquer outro país, não sendo por isso motivo para desculpabilizar ou para diminuir a perigosidade do seu uso em condução. Não é no entanto motivo para o diabolizar.
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