---

Voo histórico SAF – Pela descarbonização da indústria da aviação

02 agosto 2024

Em vésperas da COP28, conferência das Nações Unidas para as alterações climáticas, foi, pela primeira vez, operado por uma companhia aérea comercial, um voo transatlântico inteiramente alimentado por combustível sustentado para a aviação (SAF).

O voo 100 da Virgin Atlantic, operado por um Boeing 787 com motores Rolls-Royce Trent 1000, entre Londres e Nova Iorque, do passado dia 28 de Novembro, enquadra-se no âmbito de um vasto conjunto de iniciativas levadas a cabo por companhias aéreas com o intuito de acelerar o caminho que conduza ao concretizar do objetivo definido pela IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo) de emissões zero até 2050 – Fly Net Zero.

Entre outros, recorde-se que, recentemente, a 22 de Novembro, a Emirates realizou um voo de demonstração operado por um dos seus super jumbos, com um dos quatro motores do Airbus A380 a ser inteiramente alimentado por SAF. Antes, a 22 de Julho do ano passado, assinalando uma parceria entre a TAP, a GALP e a ANA, foi operado por um avião Airbus A321neo, entre Lisboa e Ponta Delgada, o primeiro voo da companhia aérea nacional abastecido com 39% de SAF, contribuindo para uma diminuição de 35% das emissões de CO2. A Virgin Atlantic reclama que a redução de CO2 pela utilização de SAF é de até 70% quando se compara com o tradicional combustível fóssil.

Boeing787

A atual regulamentação proíbe as companhias aéreas de realizarem voos comerciais com uma mistura de combustível que contenha mais do que 50% de SAF. Por isso, quer o da Virgin Atlantic quer o da Emirates, foram voos de demonstração com o intuito de providenciarem dados técnicos concretos, bem como para chamarem a atenção de fornecedores, clientes e reguladores para as ações que a indústria da aviação comercial, responsável por 2,5% do total das emissões de carbono (4% na Europa), está a desenvolver para mitigar o problema que mais aflige o nosso planeta, e para a necessidade de aumentar a produção de SAF a uma escala bem mais elevada.

Para além do já referido objetivo de emissões zero até 2050, a indústria definiu um conjunto de objetivos intermédios, incluindo o de incorporar 2% de SAF até 2025, aumentando para 5% até 2030. Para se ter uma ideia em que ponto estamos neste processo, hoje, o SAF representa apenas cerca de 0,2% do total do jet fuel consumido.

 

A contestação dos ambientalistas

A crescente, apesar de ainda diminuta, incorporação de SAF no jet fuel aparenta ser uma auspiciosa notícia por parte de uma indústria que enfrenta um dos maiores desafios do processo de descarbonização.

Apesar disso, nem todos estão de acordo. Há quem considere que estas ações não são mais do que “marketing gimmicks”, dado que o tipo de SAF presentemente utilizado no combustível para a aviação em pouco ou nada contribui para compensar a emissão de CO2 da indústria da aviação, que aumentou a uma taxa entre 4% e 5% durante a última década.

As organizações ambientalistas têm defendido que SAF é um conceito umbrella que incorpora diferentes composições de combustível sustentado para a aviação. Há alguns tipos de SAF que podem, efetivamente, reduzir o impacto climático da aviação, enquanto outros podem ser curas piores do que a doença.

Esse, defendem, é o caso do SAF atualmente utilizado na aviação, produzido a partir de matérias-primas, ditas sustentáveis, incluindo óleo de cozinha usado e gordura animal, e parcelas de resíduos de milho utilizados na produção de ração animal. Argumentam que a única opção verdadeiramente sustentável é produzir um combustível sintético utilizando carbono capturado combinado com hidrogénio verde. Porém, tais “e-fuels” são extremamente caros e consomem muitos recursos na sua produção, havendo a necessidade de aumentar significativamente o fornecimento de energia renovável de forma a produzir tal combustível em quantidades satisfatórias.

Por isso, os ambientalistas afirmam que o mais relevante para a descarbonização não é a introdução das energias limpas, mas a diminuição drástica do consumo do petróleo, carvão e gás natural, pois que, apesar dos aviões serem cada vez mais eficientes, há cada vez mais voos e, consequentemente, mais emissões de CO2, com a procura de passageiros estimada para 2024, segundo as projeções da IATA, a ultrapassar os níveis pré-pandemia. No contexto atual, até que a tecnologia que permita emissões zero esteja disponível, defendem, voar menos é a única atitude que permite cortar as emissões de carbono.

 

O fenómeno “flight shame”

A Europa, em 2019, foi responsável por cerca de 22% do total das emissões globais de CO2 da indústria da aviação, numa lista encabeçada pela América do Norte com uma parcela de 27% das mesmas. Porém, é no velho continente que têm sido visíveis as ações mais firmes no sentido da descarbonização desta indústria com o intuito de o tornar “the first climate-neutral continent”.

Entre essas ações, a mais significativa foi implementada no passado mês de Maio em França, onde foram banidos os voos domésticos entre cidades que estejam a menos de duas horas e meia de comboio, argumentando-se que, nesses percursos, o avião emite 77 vezes mais CO2 por passageiro do que o comboio.

Ainda assim, os críticos afirmam que se trata de uma medida simbólica, dado que os voos de ligação não foram afetados e que os voos domésticos são responsáveis por uma pequena percentagem das emissões de CO2 naquele país. Até agora, apenas três rotas foram alvo de redução de voos, contando-se cerca de 5.000 voos anuais num universo de 200.000 voos domésticos.

Também na nossa vizinha Espanha o tema da eliminação dos voos domésticos entre cidades servidas a menos de duas horas e meia de comboio tem estado sob acesa discussão.

A avançar, tal decisão colocará em causa a ponte aérea entre Madrid e Barcelona, que produz o dobro de CO2 por passageiro do que o mesmo percurso feito de comboio, embora, tal como em França, apenas os voos que não são de ligação sejam afetados.

A companhia aérea espanhola Iberia deu a entender que tais argumentos são falaciosos, pois que, no caso de um passageiro que pretenda viajar, por exemplo, entre Valência e Nova Iorque, na falta de um voo para Madrid, poderá fazê-lo via outro hub europeu. Nessa situação, para além de se verificar um aumento da emissão de CO2, haverá uma clara interferência no processo de concorrência no espaço aéreo europeu.

Por Carlos Paneiro - Consultor em Aviação Comercial
In revista Eurotransporte n.º 138


Tags

Recomendamos Também

Revista
Assinaturas
Faça uma assinatura da revista EUROTRANSPORTE. Não perca nenhuma edição, e receba-a comodamente na usa casa ou no seu emprego.